ARTIGOS DE OPINIÃO

CRÔNICA
COLCHÕES DE PALHA


          Um dia destes passando em frente a uma loja de colchões, resolvi parar e olhar mais atentamente. Eu não precisava necessariamente de um, mas fiquei ali admirando as novidades dos modelos e pensando, como “evoluíram” os colchões. Alguns bem branquinhos e de tão altos, pareciam dois, um sobre o outro. Mas curioso é que, nas mudanças que surgiram ao longo do tempo, uma coisa eu decididamente não gosto, eles ficaram cada vez mais duros, mais firmes (imagino que há muita gente com problemas de coluna) e que também não entendo bem, já que a coluna vertebral tem uma curvatura natural e não é confortável forçá-la a ficar plana. Entretanto, ficaram indiscutivelmente mais bonitos. Só sei que fiquei encantada e perdi algum tempo analisando a “evolução” dos colchões. Sai da loja, mas reconstruindo na memória a “história” deles.

          Voltei à minha infância, lá na fazenda dos meus avós. Ahh... eu adorava dormir nos colchões de palha de milho, cuidadosamente ajeitados todos os dias, pela minha tia Dalva. Eram feitos de um saco, em geral branco, com uma abertura na lateral, por onde se colocava a palha desfiada. De manhã quando todos se levantavam, era hora de recompô-los. Às vezes era necessário repor um pouco de palha, mas geralmente bastava enfiar as mãos naquela abertura e revolvê-la. Eles ficavam como se estivessem inflados. Quando deitava sobre eles assim arrumados, era divertido aquele barulho e até temia ficar revirando muito na cama, para que ele não “murchasse” rapidamente. Vez ou outra, alguma coisa incomodava, eram os nós de palha que passavam despercebidos na seleção das mesmas, quando eram montados.

          Em minha casa na cidade, não se usavam estes colchões de palha. Ainda eram artesanais, mas de tecidos listrados e preenchidos por capim batido. Tinham aquelas costuras verticais que formavam sulcos nestas linhas, pois aprofundavam no capim. Nada confortáveis, duros feito madeira, mas eram “chiques”, comparados aos de palha. Quando meus pais compraram os primeiros colchões de mola, creio que já morávamos na capital. Eram mais macios e as molas permitiam subir e descer com facilidade, quando meus irmãos e eu pulávamos sobre eles, nas nossas brincadeiras. Muitas outras novidades vieram depois, modelos de espuma de várias densidades, d’água, infláveis, etc...

          Voltando à história dos colchões de palha, veio-me à memória, um casal de figuras lendárias de Piracema, a Otília e o Berthô. Eram bem velhinhos, sujos e maltrapilhos, chegavam a cheirar mal e viviam das doações dos moradores da cidade, dinheiro, roupas, comida. Moravam em uma casinha pequenina e imunda, mas era comum vê-los sentados na esquina da minha rua, até altas horas da noite.

          A Otília tinha por hábito guardar comida que ganhava e creio que já esclerosada, esquecia-se delas. Guardava também cada centavo que ganhava. Era uma mulher brava e ninguém ousava chegar muito perto. O Berthô era mais sociável. Um dia ela adoeceu gravemente e foi preciso que as mulheres da cidade fizessem um mutirão, para socorrê-la. A primeira providência era dar-lhe um banho e depois colocar aquela casa, pelo menos, nas mínimas condições de higiene. Quanta porcaria havia ali, comida deteriorada, roupa suja, entulhos e tudo que eles recolhiam nas ruas.

          Durante o mutirão, Otília se recusava terminantemente que a retirassem do seu colchão de “palha” e ninguém entendia tamanha relutância. Não demorou muito e ela faleceu. Após a sua morte, as mulheres fizeram novo mutirão na tal casa e desta vez foram tirar o colchão do lugar. Para surpresa de todas, ele não era de palha, era recheado de dinheiro, notas tão velhas, que já não tinham mais nenhum valor monetário. Levaram ao único banco da cidade, sacolas e mais sacolas cheias daquele dinheiro, mas já não valia mais nada. O Berthô continuou na mesma pobreza de sempre e viveu pouco tempo a mais.

          Depois de toda esta história, fico a cismar, como eles puderam dormir em um colchão tão rico (em alguma época, aquele dinheiro tinha valor) e levaram aquela vida tão miserável? Pela quantidade de notas deduziu-se que o vinham recolhendo a vida toda. Duas hipóteses, eram loucos ou sonhadores?

          Eu dormi em colchão de palha, de capim, de mola, de espuma densa e nunca sonhei com um preenchido de dinheiro, mas em frente àquela loja, confesso, fiquei louca com um daqueles tais desenvolvidos pela NASA.

Celêdian Assis de Sousa
05 de abril de 2010

CRÔNICA
REVIRANDO MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

 
          Já ia terminando o ano de 2009, minutos finais e na pacata cidadezinha de Piracema uma noite fora do normal. Muita gente nas ruas. Na praça uma geração nova se acotovelando, para ver os fogos de artifício numa posição privilegiada. Daquela geração, que como eu, não tinha estas regalias na infância e juventude, só se via alguns gatos pingados. Sei lá por qual razão os fogos coloridos não lhes chamou a atenção e não os trouxe até a praça. Quem sabe se estivessem por ali, estariam revirando a memória e lembrando os bons tempos.

          Eu fiquei ali esperando o ano novo chegar e olhando a casa que eu nasci, de frente para a praça, já toda modificada. Até ganhou um segundo andar e o meu antigo quarto virou uma loja, onde funciona uma “lan house”. Confesso que não gostei, me pareceu uma invasão da história que vivi naquela casa. Primeiro porque a casa já não é mais de meus pais, ganhou uma arquitetura diferente e depois, na verdade acho que eu não queria ver ali a marca registrada da modernidade.

          Inicialmente veio aquela sensação de nostalgia, mas foi logo quebrada pela alegria geral, pelo céu colorido de muitas cores, os rojões estourando em diversos tons. Efusivos abraços, beijos enamorados, promessas e tanta esperança estampada em cada sorriso escancarado. Era 2010 que acabava de chegar. Na expressão de cada rosto parecia que ali se extinguiam todas as mazelas e que daquele minuto em diante tudo seria diferente. Eu não estava ali como mera expectadora. Claro que dei e ganhei muitos abraços e muitos bons fluidos de uns para os outros foram passados. Meus filhos, alguns irmãos, sobrinhos, umas tias, entre outros, lá estavam.

          Terminada toda a farra na praça e de volta à casa senti de novo aquela vontade de relembrar fatos. Voltei aos meus 6 anos ou pouco mais. Naquela época era comum faltar luz na cidade, pois dependia da usina da cidade vizinha, Passa Tempo e às vezes até por rivalidade, deixavam de fornecer energia. Enfim, para mim e meus irmãos a falta de luz era bem divertida, pois era a oportunidade que tínhamos de nos aninharmos todos na cama de meus pais e ouvirmos estórias. Comparo isto aos filmes na TV que hoje as crianças se reúnem para assistir com seus pais, só que bem mais divertido.

          As estórias que mais nos agradavam eram aquelas que nos provocavam medo. Entre as estórias prediletas havia uma de tal de Murunga. Nunca tinham o mesmo enredo, pois eram inventadas na hora, mas o personagem em questão era sempre o mesmo e representava um capetinha. Quando terminavam de contar, meus pais assistiam a disputa de quem tinha menos medo.

          Cada um de nós queria se mostrar mais valente que o outro. Neste momento um deles, meu pai ou minha mãe, dizia que precisava de pó de café para preparar o café da manhã do dia seguinte, pois o de casa havia acabado. Perguntava quem de nós poderia buscar o pó na casa de minha avó, que ficava a uns 150 metros da nossa. Aquele que fosse o mais corajoso sairia na rua naquela escuridão. Uma vez decidido quem iria, esperávamos que ele (a) saísse e íamos para a janela. Meu pai ou minha mãe gritava então: “Murunga, Murunga, cuidado que ele vai te pegar.” Aquele “corajoso(a)” voltava correndo e apavorado(a) e para nós não havia nada mais divertido. Ríamos tanto que às vezes os mais novos até faziam xixi na cama. Não importava quantas vezes se repetia a tal cena, em cada uma delas nos deliciávamos como se fosse a primeira vez.

          Como era bela aquela inocência que tínhamos e como era simples nos agradar. Os filmes na TV ou a internet com todos os seus recursos não conseguem reproduzir aquela sensação, pois hoje as crianças assistem cenas de terror, que frequentemente fazem parte do cotidiano, da sua realidade e ai os capetinhas em geral são reais. Dos meus pais e daqueles momentos de entretenimento, onde ingênuas estorinhas de terror que viravam brincadeiras de criança, da proximidade deles e do aconchego de família, ai que saudades!

Celêdian Assis de Sousa
Belo Horizonte, 01 de janeiro de 2010

CRÔNICA
OUTRORA E HOJE



          Estive revendo uns livros guardados, alguns jamais havia visto, faziam parte do acervo dos meus pais. Um especialmente chamou-me a atenção, bem velhinho, amarelecido pelo tempo, roído por traças, de capa dura, formato pequeno, quase um livro de bolso. O dito cujo " Sol Posto" em versos, é datado de 1923. O escritor, Faria Neves Sobrinho, um brasileiro, mais precisamente pernambucano, que eu não conhecia.


          Fiquei surpresa ao constatar que a 87 anos o autor já constatava que, se via nos jovens daquela época, uma tendência apática aos males da alma, que eu já com um pouco mais de meio século de vida, continuo assistindo, tão atual, quanto real. “A mocidade de hoje não tem a alma que os de outrora mostravam.” As nossas indagações continuam as mesmas, quanto aos jovens de hoje. Eles não tem gestos graves e medidos, nem sequer a aparência de velhos dos jovens de outrora, descrito pelo poeta, mas guardam na irreverência, o mesmo vazio de alma.


          Então, questiono: seremos nós que mudamos e tornamos nosso olhar intransigente, ou serão mesmo os jovens de hoje, envolvidos que estão, neste turbilhão de modernidades, desprovidos de real alegria?


          Transcrevo na íntegra, inclusive com a grafia e normas gramaticais próprias da referida data, que confesso chegaram a incomodar-me, senti falta de mais agudos e graves.


OUTRORA E HOJE


(Dedicado ao filho do autor)


E eu lhes dizia (e todos escutavam a minha voz pausadamente calma):


"A mocidade de hoje não tem a alma que os de outrora mostravam:


Nos meus tempos que o Tempo, de apressado,


já sepultou nos longes do passado,


tínhamos nós, rapazes,


na alegria feliz da mocidade,


os timidos, a audacia da bondade,


e o temor dos maus actos, os audazes.


Tédios da vida? Para longe os tédios.


Males da vida? Para que remedios...?


Tínhamos algo? Espírito contente,


davamos tudo, prodigos; se nada,


na ebriez da existencia descuidada,


davamos igualmente...


E eramos francos, eramos sinceros.


Para nós, sempre amiga e dadivosa,


não tinha a natureza tons austeros;


tudo nos parecia côr de rosa.


Hoje, onde mais a flor dos tempos idos?


Imberbes rapazelhos


têm, pelos gestos graves e medidos,


a aparência de velhos.


A expansiva alegria de ser moço,


de ser bom, generoso, ufano, ousado,


resoluto, direito,


hoje é tão só sorriso contrafeito,


enexpressivo, insôsso...


Tudo, de todo, agora está mudado?"


Calei-me. Houve um silêncio de respeito


aos meus cabellos brancos. Entretanto,


alguem, moço de certo, de um recanto falou:


E estas palavras me chegaram:


"Os olhos e a alma delle é que mudaram..."

Celêdian Assis
Belo Horizonte - abril de 2010

Mediocridade ou carência?

          Fico aqui a fitar como as pessoas se envolvem emocionalmente ou por motivo nenhum se alienam às situações que o mundo nos apresenta a cada momento. Somos bombardeados a todo momento com notícias de catástrofes na natureza, acidentes, mortes de famosos, crimes hediondos e também por que não dizer das notícias mais amenas, que nos deixam às vezes descontrair o humor.

          A despeito dos últimos acontecimentos marcantes, exaustivamente explorados pela mídia, três chamaram-me mais a atenção: a grande comoção pela morte do artista Michael Jackson; o terrível acidente com a aeronave que decolou do Brasil com destino à França, não deixando nenhum sobrevivente; o recente episódio mostrado ao mundo em uma foto, um flagrante de um momento do início da reunião de cúpula do G-8, em Áquila, Itália, na qual o Presidente Barack Obama e o Premier francês Nicolas Sarkozy parecem admirar ''as costas'' de uma brasileira, que acabava de passar por eles.

          Ora, quem de vós viu tamanho estardalhaço com a notícia do último 07 de julho? – Mulheres Uighur choram por seus maridos presos por autoridades chinesas após os protestos de domingo em Urumqi, na China (por qual motivo teriam protestado?) ou ainda, em 10 de julho deste ano - Muçulmana chora ao lado de caixão de parente entre as 534 novas vítimas identificadas do massacre de Srebrenica, em 1995 (qual o motivo deste massacre, alguém sabe?). Quem se importa com mais um confronto étnico, na China no qual mais de 150 pessoas, de duas etnias (etnia Uigur em Xinjiang contra chineses da etnia dominante Han), morreram no último domingo? Ou com mulheres mulçumanas que perderam seus maridos na Guerra na Bósnia em Srebrenica – Sérvia, no qual mais de 7 mil muçulmanos bósnios são executados e os corpos enterrados em valas comuns, no massacre pelas tropas sérvio-bósnias, na matança mais grave na Europa desde a Segunda Guerra mundial (1939-1945)?

          Estou aqui a imaginar quantos me lêem agora de olhos estatelados e presumivelmente julgando ou criticando o porque das minhas indagações. Outros tantos tentando lembrar ou entender tais episódios e qual reação eles causaram-lhes ou ainda hoje lhes causam. Quero acreditar que ainda em meio a estes existam muitos que se preocupam e se indignam tanto quanto eu, com a banalização da vida humana em prol das artimanhas do poder, da supremacia étnica, dos valores religiosos e outros. Aqueles que intimamente choram em comunhão com as mulheres mulçumanas ou com as mulheres Uighur e tantas outras mulheres no mundo que por vários motivos, choram pelos seus filhos, maridos, pais e irmãos.

          Voltando às manchetes que atordoaram muitas cabeças nos últimos dias, de súbito me pego indignada. Seria a morte de um artista reconhecidamente ídolo de multidões, motivo para tamanho aparato, não fossem as pessoas tão carentes de apego, carentes de motivos que lhes façam sentir-se parte do mundo? Ou seriam as pessoas tão medíocres, que lhes bastam apenas as futilidades para sentirem-se vivas? Homens poderosos, Obama, Sarkozy, olharam ou não a beldade brasileira? E daí, eles são homens antes de serem poderosos, não são? Que importância as pessoas podem dar a algo tão insignificante, não fosse o vazio que lhes preenche a mente? Talvez estes mesmos nem se importem com a dor das famílias e dos amigos daqueles que tiveram suas vidas ceifadas brutal e precocemente no acidente da aeronave, muitos sem a chance de ter seus corpos encontrados ou identificados e de ter um sepultamento digno.

          Mediocridade ou carência, não importa, o que realmente o mundo precisa é de mais amor das pessoas por si mesmas, para então se sentirem prontas para dar as mãos uns aos outros e entenderem que a vida de cada um só tem valor, se e sómente se, o ser humano for um ser para o outro.

Celêdian Assis
11 de julho de 2009


CULTURA X BANALIZAÇÃO



A que ponto chegou o descaso com a cultura neste país, berço de uma vasta e invejável diversidade cultural. Quando percebo estarrecida aos cruéis e deprimentes índices de audiência de um programa de televisão, pressinto maus agouros, quanto à realidade e ao futuro do meu país. Começando pelo “status” que supostamente se impõe, atribuindo ao programa uma denominação estrangeira, “Reality show”, ou seja, uma mostra da realidade do convívio de grandes irmãos “Big Brothers”. Deveriam antes de qualquer outra coisa ser grandes homens e grandes mulheres, para que pudessem contribuir exemplarmente, no serviço da formação de uma identidade digna do nosso povo.

À emissora caberia melhor o papel de responsabilidade pela escolha e principalmente o compromisso de levar ao ar uma diversão sadia, pautada em princípios que privilegiassem boas condutas e, comportamentos mais éticos.

Causa-me repulsa a banalização da nossa cultura e da manipulação de ideias, por formadores de opinião, que inegavelmente traçam a caricatura de um país que definha em seus padrões éticos e morais. O que fazer se, numa escala crescente, o povo, no último patamar por ordem de importância, é subjugado, quando deveria ser a prioridade?

O que fazer se o pão nosso de cada dia é o circo, que se sobrepõe ao riso ou choro, de escárnio ou tristeza, daquela parcela que se preocupa com a fome real de pão e educação?

As futilidades que somos “obrigados” a conviver e que ferem nossos brios, beiram às raias da imbecilidade, numa clara manifestação de descaso, que subestima a nossa capacidade de compreensão.

Não bastasse o fútil para preencher o anseio de lazer do povo, a vulgarização impera impiedosamente. A moral e os bons costumes tornam-se relegados, em prol de uma caracterização absurdamente irrelevante, a de que a modernidade do pensamento de uma sociedade precisa estar desvinculada desses mesmos valores, para enquadrar-se ao mundo contemporâneo. Valores esses que são fundamentalmente os sustentáculos da instituição família, que por sua vez serão os pilares da sociedade.

Precisamos de evolução, de contestação, de indignação, para que não nos vejamos atrofiados e vulneráveis à alienação. Precisamos de cultura na acepção da palavra, um sistema de atitudes e modos de agir, condizentes com o adiantamento do nosso povo.

Celêdian Assis
05 de março, de 2010

MISSÃO MULHER X ADVERSIDADES


          Março de 2010 - Eis que estamos a comemorar o Dia Internacional da Mulher e merecidamente comemoremos com todas as pompas. Em um ano inteiro dedica-se apenas um dia às mulheres e não poderia ser diferente, visto que não são atribuidos a outros fatos, mais de um dia comemorativo. Contudo, faria-nos melhor justiça lembrar-nos com maior frequência, a fim de despertar a consciência, do quanto ainda são as mulheres vitimadas pelos vários tipos de violência, sabidamente, a violência de caráter psicológico, física e sexual, em geral camufladas, por medo da intimidação.

          Há muito o que comemorar, principalmente os dons especiais e que só cabem a uma mulher, que a nós foram concedidos pelo Criador. Muitos avanços foram conquistados ao longo da história e que felizmente, permitiram à mulher uma inserção mais efetiva na construção da história da humanidade. Todavia cumpre lembrar que ainda há resquícios de exclusão da mulher, do poder no mundo, ou da sua discriminação no mercado de trabalho, ou do preconceito implícito nas propagandas, além da coerção explícita para que a mulher se submeta a falsos padrões de beleza, impiedosamente impostos pela mídia, roubando-lhe a identidade e a saúde.

          À memória recorre-me a mais grave de todas as opressões, o abuso sexual e outros abusos em nome de ordens diversas. Fatos horripilantes ocorridos recentemente, cujas vítimas foram mulheres e o pior, algumas delas ainda meninas, enojam-me.

          No último ano assistimos a manchetes deprimentes tais como, o caso de uma menina de nove anos, de Recife que foi estuprada pelo padrasto. Ficou grávida de gêmeos. Os médicos ao constatarem risco de vida para a menina, optaram pela retirada dos fetos. O fato teve enorme repercussão, principalmente pela decisão de um Arcebispo, a de excomungar tanto os médicos que interromperam a gravidez, quanto os pais da criança que permitiram o aborto e no entanto preservando o padrasto, autor do crime.

           Assistimos exaustivamente as cenas do sofrimento da adolescente Eloá, assassinada pelo ex-namorado e também da amiga adolescente, persuadida a intervir e passando por horas de horror. O assassino embora tenha sido preso, contou com a benevolência da opinião de alguns, que o consideraram apenas um rapaz em crise amorosa.

          Outra menina de 13 anos, que vinha sofrendo violência sexual, ficando grávida do próprio pai, optou posteriormente por ter o filho. Quantos outros abusos acontecem sem a mesma repercussão na mídia e que jamais tomaremos conhecimento. Meninas que não não chegarão a ser mulheres adultas, meninas que trocam suas bonecas por um bebê de verdade, meninas que levarão para sempre o trauma da violência. Entristece-me tanto. “Mas a frequência, a crueldade, a persistência dos ataques às meninas mostram que o crime é parte de um outro fenômeno mais antigo: o da violência contra mulheres de qualquer idade.” (Por Mirían Leitão).

          Nos últimos dias convivemos em Belo Horizonte com o pavor de nos tornarmos mais uma vítima do “serial killer”, de deixarmos nossas filhas sairem de casa, até mesmo para a escola. O monstro, um rapaz ainda jovem, pai de 5 filhos, estrupava, matava e roubava as vítimas. Está preso, mas quem restituirá a vida a aquelas moças e aplacará a tristeza das famílias? A televisão mostrou a poucos dias, sem nenhum escrúpulo, as cenas do assassinato de uma mulher em seu local de trabalho, pelo ex-marido que já vinha ameaçando-a, cujas ameaças a polícia já tinha conhecimento, por denúncias da própria mulher.

          Todas estas mulheres vítimas da violência representam a minha e a sua indignação. Causa-me asco saber da existência de seres adultos, que antes deveriam ser humanos, investirem-se de sua porção irracional e servirem-se da inocência de uma criança. Grande também é a repulsa de saber que os seres supostamente racionais, deliberem a despeito de suas crenças, sobre o destino de outros. Os valores que faltaram, ao padrasto da menina, ao Arcebispo, aos estrupadores, aos rapazes que mataram “em nome do amor” e tantos outros que cometem crimes da mesma ordem contra mulheres, são valores morais e espirituais.

          Aqueles, cuja marca de identidade é o desrespeito sem limites pelos valores da vida sua e de outrem, independem de origem e dependem incontestavelmente de suas mentes insanas e de sua podres índoles, injustificáveis sob a ótica de que todo ser humano tem livre arbrítrio e que suas escolhas são de sua inteira responsabilidade. Não implica porém, que ele seja daqui ou acolá, que seja vermelho, branco, amarelo ou de qualquer outra cor, implica tão somente que a sua escolha errônea é fruto da irresponsabilidade e do limitado conhecimento das leis que regem a vida, também as leis de fato e de direito.

          Queremos todas comemorar o nosso dia, em todos os dias de nossas vidas, em paz e com a esperança de que ainda há chance do ser humano despir-se de seu lado irracional e vestir-se de consciência.

          Este protesto é a minha homenagem a estas mulheres e meninas, vítimas de atrocidades e a todas nós que continuaremos a ostentar orgulhosamente a nossa missão maior de SER MULHER.

Abraço-as todas, com todo o meu carinho.

Celêdian Assis


08 de março de 2010